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Das páginas para as telas

Autora da obra que deu origem a minissérie da Netflix sobre a Boate Kiss, Daniela Arbex conta alguns fatores que tornam a literatura inspiração para produções do audiovisual
Por Da redação
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Nos últimos anos, temos testemunhado um aumento exponencial no número de produções para o cinema, TV e plataformas de streaming baseadas em obras literárias. A conexão dos mercados editorial e audiovisual no Brasil se tornou tão estratégica que o tema foi um dos assuntos discutidos na MAX 2023, um dos maiores eventos do audiovisual do país, realizado pelo Sebrae Minas, na semana passada, em Belo Horizonte. Vários especialistas e profissionais do setor participaram do encontro, entre eles, Daniela Arbex, jornalista juiz-forana e autora de obras premiadas, como o livro que deu origem a minissérie “Todo dia a mesma noite”, lançada este ano pela Netflix, sobre a tragédia da Boate Kiss, que aconteceu há 10 anos, na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul.

A autora já teve outras obras literárias adaptadas para o audiovisual, como o “Holocausto Brasileiro: genocídio: 60 mil mortos no maior hospício do Brasil”, eleito o segundo melhor Livro-Reportagem no Prêmio Jabuti (2014), que virou documentário, em 2016, exibido em mais de 40 países para o canal HBO. Em 2021, os horrores vividos por milhares de pessoas no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, onde cerca de 60 mil pessoas morreram em decorrência de abandono e maus tratos, foram adaptadas para a série “Colônia”, da plataforma streaming Globoplay.

Em entrevista exclusiva para a Agência Sebrae de Notícias em Minas Gerais (ASN-MG), Daniela falou como best-sellers e clássicos literários têm encontrando uma segunda vida nas telas, e ainda, os desafios em adaptar a obra original às narrativas, personagens e até mesmo emoções para o audiovisual, proporcionando experiências únicas aos espectadores.

Confira na íntegra a entrevista:

ASN-MG – Como foi escrever um livro sobre a tragédia da Boate Kiss?

Daniela Arbex – Quando você narra histórias que mexeram com o país é preciso ter um cuidado muito grande, porque toca em uma ferida que não cicatrizou e que talvez jamais vai cicatrizar.

Essa ferida sangra ainda para muitas famílias, porque vai além da perda de um filho, um parente ou um amigo, é uma dor que atinge a alma, provocada principalmente pela impunidade.

Quando essas pessoas se sentem representadas, elas te entregam o que tem de mais precioso: a memória afetiva. Um lugar que você só acessa se te deixam entrar. Por isso, quis fazer jus a essa confiança que tiveram em mim para que essa tragédia não fosse esquecida e para que as gerações futuras saibam o que de fato aconteceu na Boate Kiss, no dia 27 de janeiro de 2013.

O meu trabalho não era só contar mais uma história, mas mostrar as vidas que foram perdidas, seus nomes, sobrenomes e sonhos interrompidos.

A série aborda temas como superação, trauma e impunidade. Como você equilibrou esses temas sensíveis com a narrativa geral?

Os 23 anos que eu tive nas redações, me prepararam para entrar na complexidade dessas histórias. Mas, o mais importante é nunca perder de vista o respeito ao outro, se colocando no lugar e ao lado dele. Não pode ser um interesse comercial para vender muitos livros ou o sucesso.

Contudo, confesso que se torna um jornalismo muito solidário, no sentido de oferecer uma escuta qualificada. Mas quando você enxerga o outro a história é grandiosa.

Quais são os critérios que os diretores e produtores consideram ao escolher um livro para adaptação?

Acredito que seja pela relevância do conteúdo. No meu caso, as obras que produzo contam a história do Brasil por um olhar singular, um olhar do outro. São histórias que não são contadas por quem de fato estava lá. Isso faz toda a diferença.

A relevância do tema é uma questão, mas também temos que lembrar da forma que a narrativa está sendo contada para que ela seja atrativa. A estética do meu texto é muito descritiva. Tem muito diálogo. É quase que um roteiro.

Para se ter uma ideia, em todas as adaptações a primeira coisa que escuto é: “seu livro é um roteiro pronto. Você deu todos os caminhos”. E é exatamente isso, porque escrevo como uma leitora, ou seja, escrevo aquilo que quero ler e ver.

Então quando eu vou num lugar, que quero contar para o leitor o que eu vi, descrevo para que ele possa visualizar aquela cena. Que sinta o cheiro do Hospital Colônia; o medo daquelas pessoas que estavam no meio do caminho do tsunami de lama; ou a angústia dos presos pela ditadura.

Por isso, muitas vezes meu trabalho é indigesto e difícil, mas você não termina um livro meu da mesma forma que começou.

Qual é o papel dos escritores e roteiristas na adaptação? Como eles equilibram a fidelidade ao material original com a necessidade de fazer ajustes para a tela?

Tive experiências muito felizes e uma relação de muito respeito e troca, em plataformas diferentes do audiovisual, entre elas, a HBO e a Netflix. No caso de “Todo dia a mesma noite”, apesar de ser uma série dramática de ficção, ela também era baseada em uma história real e de muito sofrimento. Então, aquelas famílias tinham que se sentir representadas, e esse era o meu papel como consultora criativa, de zelar por aquelas histórias.

Fazia sugestões, nada de imposições. Até porque, o audiovisual tem profissionais muito talentosos, e eu não tenho a metade do talento desses roteiristas. Juntava o que eu tinha de melhor com o que eles tinham de melhor para oferecer para que tivéssemos um produto de qualidade. E deu certo! A série foi aclamada.

Como funciona o processo de aquisição dos direitos autorais de um livro para a produção de um filme ou série de TV?

O autor da obra é o dono dos direitos. A editora não pode vender sua obra para um canal sem a sua autorização. No meu caso, a partir de uma experiência negativa, que tive lá atrás com uma antiga editora, eu aprendi.

Quem faz a obra é o autor. Não é justo dividir o que ganhar com a editora, embora para ela já seja maravilhoso ter um livro adaptado, pois acaba alavancando a venda da publicação. Assim, todo mundo ganha. A minha relação com a Intrínseca é muito transparente, de muita ética. Tanto da parte deles, quanto da minha. Tem sido uma jornada incrível. Eles respeitam muito o meu trabalho e isso é muito importante.

Como tem sido a sua experiência no mercado de adaptações de livros?

Eu tive a oportunidade de ter sido procurada. Não precisei bater na porta de nenhuma plataforma. Pelo contrário, tive a vantagem de ter meu trabalho sendo disputado pelos players, e ter a opção de escolher com que quero trabalhar. Isso é consequência de uma carreira de 30 anos de história, respeito e credibilidade, construída com dezenas de prêmios jornalísticos

A experiência conta muito. Não é apenas ter uma grande ideia que ela irá ser adaptada, há um caminho que tem que ser trilhado. Nesses últimos cinco anos, vejo o meu trabalho ganhar as telonas. Mas, até chegar aqui foi muito chão, muitos capítulos que mudaram a minha história e a do Brasil.

Não tem fórmula pronta. É muito trabalho e muita paixão pelo jornalismo. Sou escritora, mas antes de tudo sou jornalista, e serei sempre. O segredo foi levar o aprendi no jornalismo para as minhas experiências literárias

Quais são os principais desafios associados à proteção de conteúdo contra a pirataria e o uso não autorizado?

Isso é um problema imenso, porque você não tem muito controle. Apesar das editoras terem todo um cuidado nos conteúdos, eles sempre conseguem ter acesso. Às vezes, as pessoas conseguem baixar sem pagar, e isso é uma pena, porque lesa o autor e todo o mercado.

Uma vez me lembro que fui fazer uma entrevista em Santa Maria, para o “Todo dia a mesma noite”. Cheguei em casa que havia um professor universitário lendo um livro meu. Perguntei a ele “onde você comprou o “Cova 3012?”. E ele me respondeu que havia baixado na internet. Mas, ele mesmo não entendia que estava participando de um crime. Então, expliquei que isso lesa o autor e toda uma cadeia produtiva. Ele quase morreu de vergonha.

Para um livro ser editado, a empresa investe muito. Mas, infelizmente, ainda não tem braço para combater a pirataria, que é um problema muito sério no Brasil.

Quais conselhos você daria a aspirantes a autores ou criadores de conteúdo que desejam entrar no mercado de audiovisual?

O conselho que eu daria é para que essas pessoas leiam muito. Se preparem intelectualmente, lendo, fazendo e consumindo histórias. Para ser um contador de histórias é preciso um trabalho de campo, vivenciar essas narrativas.

Sou uma contadora de histórias reais. Não consigo sentar no meu escritório e inventar uma. Gostaria muito de ser uma autora de ficção, mas não tenho essa capacidade. Você precisa estar com as pessoas e gostar de gente. Se não tem um olhar diversificado, vai ficar limitado.

Sobre o audiovisual, se o autor acha que é tem uma história que merece ser contada para um maior número de pessoas, corro atrás! A questão é: tenha um bom conteúdo, que seja completo e tenha qualidade. Não pode ser só um esboço de ideia. Não é à toa que há um processo muito longo de maturação para um livro virar uma produção do audiovisual.

O “Todo dia a mesma noite” virou série em 2023, mas é uma história que acompanho desde 2013. São 10 anos! Não tem milagre, tem trabalho. Vejo essa nova geração buscando aquela história que vai bombar. Se você não for realmente talentoso, não permanece no mercado, pois é um setor competitivo, que te engole todos os dias com um novo produto.

Por isso, não se preocupe com os outros, faça o seu trabalho. Eu tenho o meu nicho e talvez se escrevesse ficção ou histórias mais leves eu poderia vender mais, mas não é o compromisso que assumi na vida. Lembre-se sempre de ser coerente com sua verdade.

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Assessoria de Imprensa Prefácio Comunicação

Aline Reis – [email protected]

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